31 outubro 2014

Diário de uma neta



Poderia se chamar “diário de uma jornalista” ou “diário de uma catadora de história”, afinal, foi exercendo o melhor lado da minha profissão que eu vi a vida por outro ângulo. Esse relato não é sobre uma manhã ao lado de crianças com câncer. É sobre a presença da minha avó em todo esse percurso, mesmo que de longe, mesmo que tão longe. Eu vou escrever sobre sentimento e do quanto dói, às vezes, sentir muito.

Cheguei com espírito de jornalista. Eu me fiz forte, rígida, serena. Cheguei a falar:

"Acho que nesse momento não seria tão difícil visitar essas crianças."

Até o momento da saída realmente não foi. Em casa, a ficha caiu.

A garotinha fragilizada não sai da minha mente. Ela, que quase sem forças, acenou com a mão na esperança de conseguir soltar um beijo, ficar de pé, brincar, correr, abraçar. A menina que lentamente piscava os olhos, expressava em seus gestos falhos uma tentativa de registrar uma passagem rápida de três jovens completamente despedaçadas por dentro, mas sorridentes e confiantes por fora. “Tudo vai dar certo”, eu imaginava enquanto fechava a porta do quarto para visitar outra paciente. Espero, ansiosamente, notícias daquela que me fez chorar por dentro – depois em lágrimas – mas que me mostrou que a luta deve sempre superar a dor. Que a esperança deve sempre superar a derrota. Que o amor deve, obrigatoriamente, superar a tristeza.

A mãe emocionada não me deixa parar a cabeça. O filho se encontrava em sua última sessão de quimioterapia. Tratado, recuperado e agora completamente feliz, saudável, procurando a nova fortaleza. O garoto de pele alva e corpo rechonchudo já queria brincadeiras. A mãe, aliviada pelo fim da batalha, só desejava chorar. Chorar e agradecer. Ele chegou ao hospital lamentando, querendo voltar pra casa. Hoje, enfim, ele retorna sorrindo.

A porta que fez meu mundo desabar – e está aqui o motivo do título – era enfeitada por uma plaquinha com o seguinte dizer: Dr. Dalva. Depois de andar o hospital por todos os corredores em busca da minha personagem encantada, encontrei-a no lugar menos provável. Comecei na pediatria e terminei na porta da médica que tratou a minha avó (nunca havia visitado o local). Encostei-me na parede, respirei fundo e pensei comigo mesma:

“Não pode ser”.

Os olhos lacrimejaram. A garganta fechou. Uma única imagem sobrevoava minha mente. E um único desejo pulsava em mim: sair o mais rápido possível daquela porta. Parece pequeno. Parece uma lembrança inútil. Mas sabe o que é? A saudade dói. E perfura o mais duro coração. Desde o momento, tudo que eu queria era chegar em casa e contar à minha avó como havia sido minha ida ao hospital em que ela tanto falava, agradecia e adorava, embora as lembranças não fossem das melhores. Queria entrar correndo pelo portão e contar a história de cada criança que vi e ouvi. Falar do pianista e dos seus causos incríveis. Dizer o quanto eu queria ajudar aquelas pessoas e o quanto eu sou fraca diante das fragilidades. Mas aí, num passe de mágica, a ficha resolve cair: vovó não está aqui.

Ela se orgulharia de mim pelo projeto tão humano que venho fazendo com minha amiga (ou irmã). Iria querer ler cada história, cada fala, ver todas as fotos e dizer o quanto isso é bonito e leve e gratificante e generoso. Ninguém é menos importante por ouvir ou não as minhas experiências. Mas essa... Essa em especial deveria ser dedicada à minha avó. E o que vier por aí terá todo meu coração entregue à história e a ela.

Infelizmente não vai dar pra contar a experiência mais leve e bela da minha vida. Mas deu – e isso foi feito com maestria – pra colocar todo meu coração, pra sentir saudade, pra sentir amor, sentir carinho, compaixão. E senti tudo isso com exagero. Senti muito. Saí outra pessoa do hospital de combate ao câncer. E entro em casa ansiosa, mas ciente de que a minha saudade não acaba aqui. Minha saudade começa quando as lembranças terminam. A ficha cai. As lágrimas também.

Dani Fechine

Nenhum comentário:

Postar um comentário

"Aproveita que a melhor parte é de graça e feita com mais amor do que cabe em mim." (Tati Bernardi)