26 julho 2014

O dia que a saudade transbordou



Ontem fui dormir e era dia do escritor. Hoje eu acordei e é dia da avó. Ontem ela me daria os parabéns sem ligar pra audácia que é me chamar de escritora. Ficaria feliz com os meus avanços e as minhas conquistas com as letrinhas. Hoje eu escreveria um cartão enorme pra ela, com minha letra uma pouco desnivelada e com poemas procurados no Google (porque minha imaginação sempre se esvai quando penso nela). Eu chegaria na cozinha devagar, você estaria mexendo alguma panela no fogão e eu ficaria em pé, atrás de você, esperando a surpresa acontecer. Você então viraria e eu diria toda envergonhada:

“Feliz dia da avó, vó.”

 E te entregaria o cartão, junto com um abraço apertado e um beijo estalado. Você iria me responder, brincando com os fonemas, do jeito de sempre:

“Obrigada, obrigada, obrigada.”

O dia de hoje merecia flores, vó. Merecia um buquê de vermelhas enfeitando a tua sala e fazendo brilhar teus olhos. Flores sempre foi a sua maior paixão. Um encantamento que eu nunca vi maior. O dia de hoje merecia presença. Merecia você sentada aqui, na minha frente, enquanto eu te escrevo. Merecia você derramar algumas lágrimas ao ouvir minha mãe ler meu texto pra você – mesmo que não fosse tão emocionante assim. Merecia te ver acordar linda, linda e jovem como sempre foi.

O dia de hoje merecia rotina. Merecia te ver sentada na mesa, com suas manias, no horário certo. Engraçado, vó, é que hoje eu tomei esse lugar pra mim. Involuntariamente e aos poucos, eu fui me acostumando a almoçar onde você almoçava. Onde eu sempre te via ao chegar da escola. Se tem algo que nos faz tanta falta é a tal da rotina. O dia merecia uma das mais pesadas e rígidas. Desde o acordar até o momento que você pendia a cabeça, cochilando na hora da novela. Merecia te ver levantar à tarde, depois da sesta, caminhar até a cozinha, pegar alguma fruta ou um café com bolachas e sentar no sofá da sala de estar. Nesse momento eu largava os meus estudos e me juntava a senhora. O dia de hoje merecia as nossas conversas e fofocas da tarde.  

Saudades, vó. Saudades. Eu só queria dizer que eu sinto a sua falta. E que algumas datas são sempre maiores que outras. O seu aniversário, o dia da avó, o dia 14 de outubro, o natal, o meu aniversário. Todos os dias são maiores que outros. Todos os dias a saudade é maior que o dia anterior. Todo dia a dor diminui. Mas a cada abrir de olhos de manhã o meu amor cresce, a minha saudade se alimenta. O dia de hoje está repleto de memórias. De nostalgia. De lembranças marcadas pela rotina, pelo coloquial. E é por isso, é pelo amor na rotina que o dia de hoje merece homenagem. Merece saudade, também. Mas saudades já acontecem todos os dias.

Dani Fechine

17 julho 2014

O amor não dói



Você me disse que amar não dói. Pronunciou isso duas ou três vezes enquanto discutíamos a minha loucura de não querer me envolver. Queria me fazer acreditar que tudo são flores, que a água do poço não seca e que a gente não chora por amor. Você me disse com todas as letras: “Menina, o amor não dói.” Queria que eu acreditasse na lenda de que amar é ser feliz, de que saudade só sente quem ama e que por isso um sorriso no rosto é mais coerente. Queria que eu caísse nessa ideia de que amar é o estado de espírito mais pleno da natureza.

Gritou no meu ouvido pra que eu não esquecesse: “Amar o outro não dói, sabia?” e completava dizendo que demonstrar também não era uma prova de fogo. Queria que eu acreditasse em toda essa trama de contos de fadas, onde amor é o ápice da felicidade. Queria que eu largasse mão da frieza inócua e me jogasse nos carinhos que uma vida a dois pode oferecer.

Dessa vez sussurrou: “o amor não dói, não”. É tudo paranoia de uma cabeça perturbada pelo passado, vidrada numa vida com restos de cacos de vidros perfurados nela. Queria que eu entregasse meu amor, que eu amasse como uma pessoa normal, que libera por todos os cantos do corpo o que o coração não consegue guardar. Queria que eu explodisse a alegria que é sentir. Pra depois triturar meu coração e deixá-lo em cima da mesa como algo sem conserto.

Agora escrevia em letras garrafais: “Querida, o amor não dói”. Tentava me fazer acreditar através de sua rápida e irreconhecível caligrafia, que pode ser bom chegar em casa depois de um dia cansativo e encontrar uma mão que acaricia os seus cabelos. Queria que eu caísse nessa de que quem ama, cuida. E que ser cuidada poderia ser maravilhoso. Poderia ser amor. Escrevia em todos os lugares da casa: no espelho do banheiro, na porta da geladeira, na parede do quarto, na mesa da sala. Queria que eu não esquecesse nunca que o amor não dói. Que amar não machuca. E que essa insistência toda era só um pedido de confiança.

Queria que eu acreditasse nessa ideia tola de amar. E o pior: eu acreditava. Acreditava na felicidade de dividir um milk shake com dois canudos, e de, apesar de simples, dar as mãos em qualquer lugar, de abraçar e sentir ali um porto seguro, uma Terra do Nunca, uma paz. “O melhor lugar do mundo nunca foi um lugar”. Sempre foi o teu abraço, o meu corpo no teu, os teus braços me envolvendo e as tuas mãos passando lentamente na minha nuca. Amar também nunca foi só um sentimento. É uma vida inteira que requer paciência, compreensão e tempo. Tempo pro outro. Tempo pra entender as incertezas e alma de quem vive ao teu lado. Tempo pra acreditar que toda essa loucura de comédia romântica hollywoodiana tem um lado possível. Tempo pra não esquecer de que o amor é sempre lembrar para si mesmo o quanto o outro é especial e que a vida está mais brilhosa, mais vibrante, mais bonita, depois que ele chegou. Queria que eu acreditasse nessa ficção de novela das sete. E eu acreditava. E sentia o aroma de amor inundando os cantos da casa. 

Dani Fechine

Citação: “O melhor lugar do mundo nunca foi um lugar” (Pedro Gabriel - eu me chamo antônio)