25 setembro 2014

Novo lar



Entrei devagar sem a pretensão de mostrar que ali eu estava. Não queria fazer tumulto, não queria que minha presença fosse notada, muito menos que o estrago fosse grande. Eu entrei ainda de cabeça baixa, mas sempre olhando um pouco pra frente, tentando enxergar se o futuro tinha algo a me dizer. Não, ele não tinha. Me mandava seguir sem pensar muito nele.

Quando cheguei não quis ser feliz de imediato. Nem procurei paz, amor e carinho no primeiro olhar. Quis conhecer a nova casa, o novo lar. Aproveitar o cômodo novo para me fazer nova também. Quis me aconchegar um pouco na poltrona velha, mas confortável. Eu fui entrando de fininho, sem chinelos, de ponta de pé. Sem samba nem rock. Fui sem música e sem melodia pra não atrapalhar. Fui convidada a entrar e entrei ainda pedindo licença. “Com licença, moço, posso entrar? É que a bagunça pode ser maior do que você imagina.”

E entrei. Cada passo foi uma nova forma de conhecer o mundo por outro lado: o ângulo do “deixa estar”. Entrei pra viver cada dia como o único da minha vida, até que chegasse o tempo de começar a entendê-lo como o início de alguma etapa. Eu entrei no meu novo lar divagando pelos móveis. Queria conhecer cada lugarzinho daquele espaço. Queria fazer parte dessa outra vida, ser necessária, ser uma só. Quando fui convidada a entrar não pensei muito. Casa nova, vida nova. Fui com o pé direito e me (ar)risquei no novo assoalho de madeira.

Quando eu pude recuar, eu já não queria mais. Já havia tomado conta de mim toda a mobília da casa. A decoração era de uma engenhosidade magnífica, inquebrável também. Mas se mostrada rígida. Imutável. Parecia que eu vivia numa loja de antiguidades. O mogno impecável. Os espelhos sem ferrugem. Os vasos translúcidos. Mas faltava vida. E faltava eu me sentir em casa. 

Eu risquei o chão com o pé e quis que aquele novo piso fosse o meu novo sustento. Passei as mãos nas paredes para me certificar de que eu estaria debaixo de ótimas estruturas. Mas precisei comprar algumas grades e travas: haveria de me sentir segura, cuidada e protegida. No meu novo lar coisas lindas me faziam companhias. Me senti leve pra sorrir sem preocupação. Mas ele ainda era recheado de obstáculos. Não dava pra se fazer escolhas. A casa era antiguada e não iria mudar. Afinal, essa foi a condição. “Te entrego um novo lar, mas você há de convir que o costume é por sua conta.” Eu tentei me acomodar.

Como falei, gostei da poltrona velha. A TV também era um retrô maravilhoso. Mas a cama estava meio desforrada, as garrafas de água vazias e os pratos ainda para serem lavados. Os quadros eram também antigos. Não se mexia em nenhum deles. Eu queria colocar minha cara, meu jeito, no meu novo lar. Mas não era tão fácil mudar as coisas de lugar. 

Quando conheci meu novo lar, eu nem bati na porta, mas a abri sem fazer barulho. Caminhei até a sala de estar, da sala de estar pra sala de jantar, da sala de jantar para a cozinha, da cozinha para o quarto e fui conhecendo tudo que eu podia da minha nova vida. Mas pra poder morar de fato na casa nova eu não precisava ter tirado os chinelos. Deveria ter entrada calçada, me sentindo dentro do que já era meu. Mas eu os tirei. E agora eu estou tentando lembrar onde deixei-os. Na porta da frente não está. Preciso calça-los. Preciso pisar firme e com familiaridade do meu novo lar. O lar a gente inventa. E é feliz com essa fantasia. 

Dani Fechine

09 setembro 2014

O que você fez com a vida dela


Hoje ela tem 25, mas oito anos não se esquecem facilmente. Aliás, até que se evaporam, mas quando o tempo esfria aquilo ali se transforma em orvalho e não tem quem a faça pegar um casaco e se esquentar: ela sabe que a noite vai ser longa e que não há cobertor que dê jeito. Hoje ela cresceu e amadureceu, mas não esqueceu o que a fez se tornar essa mulher incrível. Você pensa que ela é quem você pensa que é? Ledo engano, moço.

Olha, ela caiu, levantou, tropeçou, depois caiu de novo e dessa forma ela foi vivendo num ciclo vicioso onde você era o hospedeiro definitivo. Tropeçava, caía e levantava. Rapaz, você não imagina o quanto ela mudou com isso. Eu sei que até hoje você não se esqueceu da última viagem que fizeram juntos, mas também ainda lembra-se do último término. Eu sei o quanto você ainda a ama, mas amar todas as outras ainda parece mais fácil. Sei que é complicado pra você aceitar isso, afinal, ela te esqueceu. E foi exatamente esse ponto que o fez perceber a mulher que você tinha em mãos: ela se entregou de corpo, alma e com o coração na mão, te entregando pra cuidar. Você ficou com o corpo e largou o coração no primeiro apoio que encontrou no caminho.

Ela ainda se lembra de você, mas não se anime não, moço. Tu és recordação de aprendizagem, não de saudade. Ela ainda guarda uma foto, não posso te negar isso. Dia desses encontrei-a perdida em uma dessas caixas malucas que ela guarda de tudo um pouco. Mas normal, né? Que mulher não quer guardar lembranças do seu passado? Ficou uma carta também e algumas lembrancinhas, mas nada que a deixe nostálgica quanto a você. Ela te olha e sabe o que ela pensa? “Não mudou nada”. E se orgulha de ter te deixado. Mas essa mulher é tão incrível, moço, mas tão incrível que ela quer o teu bem quanto o de qualquer outra pessoa. Ela quer que você mude! Que seja bom, íntegro, honesto. Ela quer que você seja homem, pra que seja feliz de verdade algum dia. Ela lembra de você e agradece por tudo que viveu. Hoje ela é mulher, mas lamenta você ainda ser um menino.

Rapaz, me desculpa, mas te falo tudo isso porque você realmente precisa de um choque. Eletricidade não adianta, ia te deixar ainda mais desconectado do mundo. Ela não fala mais em você e isso já vem acontecendo há alguns anos. Ela está feliz, alegre, sorridente e contente. A vida dela vai muito bem, ela conseguiu emprego na agência que tanto queria e está quase dando entrada num carro. A estante dela duplicou. Isso não muda pra você, mas para o mundo ela acrescenta e muito com essa bagagem literária que ela tem. Parece que depois de você a vida dela deu uma engrenada que, ó, você merece até os parabéns por tudo que aprontou. Já dizia as beatas: Deus sabe o que faz, viu?

Mas agora olha só pra você. Os livros estagnados na metade, o copo ainda cheio de vodka, a cabeça vazia e um corpo sempre pedindo um pouco mais de corpo a corpo, de mulheres novas, pessoas novas. Você não muda, hein, cara? Não merecia mesmo a mulher que perdeu. Mas, ó, se preocupa não. Todo mundo cai em si um dia. Ela demorou alguns anos pra se encher de si e perceber o tamanhão dela diante de você, e depois de oito anos ela pôde agradecer por cada erro cometido no passado. Não precisava tantos traumas, mas valeu um pouco a pena. Hoje, tenho que concordar, ela ficou um pouco ranzinza e desacreditada. Mas nada como um novo amor para sempre amolecer o coração dela. No fundo, bem lá no fundo coração, essa mulher que você perdeu sabe que amar é a única salvação e, infelizmente, ela também sabe que era ela a mulher da tua vida. Moço, rapaz, cara, seja lá como eu te chamei, escuta só mais uma coisa: vai amar, vai. 

Dani Fechine