28 maio 2016

Dona Ivone voltou a ser criança

Foto: Evandro Pereira

Ivone Pereira Portela, que demonstra um rápido impulso no olhar quando é chamada de Didi, tem 84 anos, mas não se reconhece mais. O olhar silencioso mostra a sua mente vagando em algum espaço que ainda está à procura. É composta de corpo, alma e coração, mas o passado não habita mais a sua vida. Há mais ou menos 15 anos Dona Ivone convive com a doença de Alzheimer e recebe de graça o amor e o carinho da filha Clarinda, que largou a própria vida e se entregou a viver mais uma: a da mãe.

Didi é vaidosa, os olhos verdes combinam com a estampa da blusa. Seu cheiro é de gente que tem saudade de si e da vida, mas que não é infeliz por isso. De pernas cruzadas, com as mãos no joelho, Dona Ivone brinca com os chinelos vermelhos combinados com a saia. Tudo isso é obra de Clarinda que, sem deixar faltar amor, cuida da mãe como se fosse filha.

De início, Ivone se perdeu duas vezes na rua e não sabia como voltar para casa. “A primeira vez uma colega minha trabalhava perto da lagoa e percebeu que ela estava sozinha e desorientada, então colocou ela dentro de um ônibus para casa. A segunda vez ela foi à casa de uma amiga e não acertou voltar”, conta Clarinda Pereira. Depois desses episódios, Dona Ivone passou a guardar os objetos em lugares completamente diferentes dos habituais. A partir desse momento, os profissionais entraram em cena. “Acho que a pessoa com Alzheimer não deve ser tirada do lar e mamãe insistia em ir embora para Patos. Ela foi e lá percebi que eu tinha que tomar conta. A pessoa com Alzheimer fora do seu lugar fica mais perdida”, Clarinda explica.

Foi quando, por amor, por carinho e por gratidão, abriu mão da própria vida. Cursava Ciências Contábeis e, mais ou menos na metade do curso, parou. Clarinda agora cuida de uma criança de oitenta e quatro anos. “Ela é minha mãe. É o meu tudo”, a filha não precisa de explicações para se dedicar à saúde de Ivone. O amor basta para as duas que, desde sempre, estiveram juntas. “Só nós duas”, Dona Ivone às vezes diz a Clarinda, que acredita ser uma missão e está à disposição para cumpri-la até o fim.

Ivone começou a esquecer até o que havia comido. Ganhou peso e mais alguns esquecimentos. Adorava passear no comércio aos sábados e, depois do Alzheimer, a senhora de olhos verdes não queria mais entrar nas lojas. Inevitavelmente, a memória de amor que guardara até o último momento, foi se perdendo. Não reconhecia mais os filhos, gravou apenas o nome do mais velho e da mais nova. Clarinda nunca esperou por isso. Não imaginava que sentiria o coração desfalecer antes do tempo. Mas quando Dona Ivone não a reconheceu mais, parecia que a morte havia chegado antes do tempo. “Foi quando eu senti mais. Isso pra mim foi a morte”, conta.

Clarinda agora é mãe e filha ao mesmo tempo. Dona Ivone acorda às oito horas e vai logo tomar um banho, lavar o corpo e esfriar a memória. Em seguida, toma a sua vitamina e descansa o resto do dia na poltrona que fica na sala. Brinca com os chinelos e o lençol, enquanto Clarinda faz os seus consertos de roupa. “Pra não enlouquecer eu inventei de fazer costura, pra ver gente e fazer alguma coisa. Só consigo trabalhar pela manhã, que ela está dando o cochilo dela”, relata.

Clarinda deixa claro e é fácil concordar com ela. Cuidar de uma pessoa com Alzheimer requer conhecimento. De causa e interior também. É preciso conhecer os detalhes, as vontades, as necessidades e o limite do outro. É realmente como se fosse uma criança que não fala, não anda e não consegue pedir o que deseja. A mãe precisa ter calma, prestar atenção e entender. Além de manter uma rotina constante, uma atenção diária, uma observação que não cessa. Com o tempo, a linguagem torna-se fácil e já é imediata a atenção que a criança recebe. É preciso tempo para conseguir tamanha sintonia. Profissionalmente, Dona Ivone recebe a visita de uma fisioterapeuta dois dias na semana e de uma fonoaudióloga, para exercitar a voz e melhorar a alimentação.

Clarinda nunca apanhou na vida, muito menos da mãe. Mas hoje, como uma criança chateada nos braços da mãe, Dona Ivone dá tapas no rosto da filha, mas já com pouca força. “No início quando eu ia fazer a higiene dela, apanhava muito na cara”, Clarinda conta sorrindo. “Quando ela percebe que eu estou mandando, ela faz por pirraça. É um menino mesmo, só faz o que quer. Tem hora que ela sabe o que está fazendo”, completa. Dona Ivone nasceu agora e ainda está aprendendo a lidar com esse mundo que não a compreende. Mas já reconhece nos braços da mãe – ou da filha – o aconchego que precisa.

O olhar de Clarinda é com amor. Mas um amor que ultrapassa patologias. Um amor que reconhece no outro apenas a necessidade de ajuda. Um amor sincero que não vê doença. “Se você for olhar a doença, você chora, entra em desespero. Uma pessoa com Alzheimer precisa, principalmente, de muito amor”, diz. E isso não falta para Ivone. Transborda em abraços, em beijos, poemas e carinho. Transborda em cuidado, em atenção e saudade, mesmo na presença, mesmo ao lado. E é recíproco. Dona Ivone só quer carinho. E não é poupada disso.

“Os idosos com Alzheimer são muito carentes, porque todos se afastam”, Clarinda relata. Mas, ainda assim, Dona Ivone que prefere ser chamada por Didi, sorri e parece gostar das brincadeiras de Clarinda. Ela pode, inclusive, não se reconhecer ao se olhar no espelho, mas se alegra com os pequenos detalhes, porque felicidade não requer sentido.

Dona Ivone sempre foi muito dinâmica, sempre procurou fazer alguma coisa. Clarinda, inclusive, herdou dela o gosto pela costura. Mas, de repente, foi deixando os seus costumes e hoje é a filha que assume a casa. Clarinda costuma dizer que Dona Ivone não é mais a mesma. É o corpo dela que está sentado na poltrona. “Cadê mainha? Mainha já se foi. Acho que ela só está cumprindo o tempo dela”, desabafa. A saudade chega antes mesmo da partida.


Tudo isso se chama agradecimento, não cuidado. Clarinda já foi a filha acalentada nos braços de Dona Ivone, mas hoje é ela que embala os sonhos da mãe. Como uma gravidez às avessas, filha e mãe trocam de papel.

Dani Fechine (originalmente publicado no Jornal A União)

Gregório Duvivier, um autor-ator

Autor-ator, ator-autor. Não se sabe. Gregório Duvivier é uma mistura inteligente de fazer graça com as palavras. Escreve com tanta personalidade como quando atua. Seus passos em paco são palavras embaralhadas, improvisadas. As linhas do texto são cenas protagonizadas em ensaio.
Gregório Duvivier é um ator, mas também humorista, roteirista e escritor. Ficou conhecido pelo seu trabalho no cinema e no teatro e, desde 2012, tornou-se o Gregório do Porta dos Fundos, canal de humor no youtube. É autor dos livros A partir de amanhã eu juro que a vida é agora, Ligue os pontos – Poemas de amor e Big Bang, Put Some Farofa e Percatempos – tudo que faço quando não sei o que fazer. Gregório Duvivier também assina uma coluna semanal na Folha de S. Paulo.
No dia 22 de novembro, o escritor participou do evento Campus Festival, falando sobre a sua vida profissional, bem como declarando opiniões a respeito de determinados temas que costuma tratar em suas colunas, como a religião e a legalização da maconha. Vem conferir e conhecer mais um pouco desse cara!

Dani Fechine: Como foi a sua carreira até atingir esse momento que você vive hoje?
Gregório Duvivier: Sou ator, antes de mais nada. Comecei a fazer tetro com nove anos de idade, então sou apaixonado por teatro, é isso que me define. Mas aos poucos fui descobrindo o prazer de escrever, inclusive, para teatro. Porque eu acho que o autor consegue dizer o que pensa e o ator não. O ator só diz o que pensa através dos trabalhos que ele escolhe. Então eu senti a vontade de dizer o que eu pensava e comecei a escrever para teatro, fazer vídeos. O Porta dos Fundos veio exatamente para isso. A gente queria ser autor-ator, gênero que eu acho muito legal. De modo geral tenho escrito e atuado por aí.

DF: Quando foi que nasceu o Gregório ator, humorista, e o Gregório escritor?
GD: O Gregório humorista nasceu no tablado, no teatro mesmo. Quando comecei a fazer teatro eu vi o poder do riso e isso é viciante. Supre uma carência de todos nós, eu acho, de aprovação, de afeto. Em geral o humorista não se declara humorista, as pessoas é que o declaram. Só quando subi no palco foi que eu percebi que as pessoas estavam rindo de mim.

DF: Qual foi o momento mais decisivo da sua carreira?
GD: Foi quando eu saí da Globo para fazer o Porta. Nós [a equipe do Porta] éramos contratados da Globo e escolhemos sair daquela emissora, que era um emprego seguro, para fazer o nosso próprio negócio. Foi um momento bem decisivo.

DF: Quem são seus grandes inspiradores?
GD: No humor, tem o Millôr Fernandes, com um humor das antigas, escrito e desenhado. Como ator, o Pedro Cardoso, que é um cara que eu amo, Fernanda Torres também acho genial, brilhante. A gente tem no Brasil essa tradição de bons atores-autores, como o Pedro e a Fernanda. Atores que escrevem muito bem ou autores que atuam muito bem. Lá fora, claro, destaco Woody Allen. Gosto muito das pessoas que fazem humor com drama. Chaplin, por exemplo, acima de tudo. Pessoas que fazem humor com poesia, sobretudo, acho que isso é muito fundamental.

DF: Você se imaginava chegar até onde você chegou?
GD: Sim, mas eu imaginava na verdade coisas muito maiores. Quando eu era pequeno eu imaginava que eu ia ganhar o Prêmio Nobel da Paz. Eu tinha ambições muito maiores que essa. Achei que com 29 anos já teria morado em oito países diferentes e nem saí do Brasil praticamente, nem nunca morei fora. Achei que eu fosse ter resolvido vários problemas internacionais, e eu não fiz nada.

DF: Você acha que é possível quebrar o lado conservador da mídia?
GD: Sim, eu acho que é função de todos nós escrevermos, empurrarmos as fronteiras. Porque as pessoas falam sempre que não pode. O jornal está dizendo o tempo todo a maneira como você tem que escrever. Na faculdade de jornalismo você aprende o tempo a pirâmide invertida. Eu acho que é tarefa nossa dizer: “quem falou que é assim?” O jornalismo sabe mesmo fazer? Os donos dos jornais estão falindo, então você querem dizer pra gente como é que faz? Então, de modo geral, tem-se muito a aprender com quem está escrevendo hoje, os jovens principalmente, e os jornais têm que aprender com eles. O modelo antigo do jornalismo, inclusive vinculado a grandes empresas e interesses privados, está caindo, está decadente. Os grandes jornais estão sempre ligados a grandes famílias de poder no Brasil. Isso eu acho criminoso, é sinal que nós somos um país muito atrasado em relação à liberdade de imprensa. E acho que a internet está mudando isso. Nós temos uma imprensa mais livre, eu acredito muito no poder da internet quando se trata disso.

DF: Os seus textos da Folha, geralmente, causam muitos debates na mídia. Como você lida com o confronto de opiniões?
GD: Eu acho que a competição é muito necessária. É muito importante as pessoas discordarem de você. Particularmente, eu não gosto muito de me envolver em brigas na internet, porque eu acho que elas são pouco frutíferas. Acho bom os diálogos interessantes. Me incomoda os diálogos ofensivos, que te desautoriza e parte para taques pessoais. Esses eu nem leio, porque sei que vou me magoar.

DF: Quais dificuldades você encontra para defender as suas bandeiras sociais e políticas?
GD: Eu acho que a gente vive num país que está com a democracia ainda muito verde, começando. As pessoas não estão acostumadas a discordar. Me incomoda que o Brasil ainda seja um país muito conservador. Um país onde nunca houve uma grande revolução, apenas golpes. E os golpes no Brasil não vieram para mudar a estrutura social, vieram para dar continuidade. Então, de modo geral, o Brasil é um país que não sabe mudar e não quer mudar. Penso que nós somos muito retrógrados e antigos. O aborto no Brasil, por exemplo, nem está sendo discutido direito. As drogas, ninguém fala de drogas sem preconceito. Os Estados Unidos são também um país conservador, mas eles já perceberam que algumas batalhas já se perderam e que é melhor regulamentar do que fazer a guerra às drogas. Além disso, ninguém vai conseguir acabar com o aborto, ele vai continuar sendo feito, mas de forma perigosa para a mulher. Então tem que liberar exatamente para que ele seja mais seguro.

DF: Como você acha que a internet, o humor, a arte, podem ajudar no debate político da sociedade?
GD: Eu acho que a internet possibilita você a ter diálogos mais horizontais. Eu acho que assim as coisas se resolvem melhor. Vertical é o que o jornal faz, é uma pessoa que diz o que você vai ler todos os dias. É uma relação de poder. E na internet é uma relação horizontal, você escolhe o que você vai ler. Você está falando de igual para igual com o leitor. Jornalista e leitor são semelhantes e isso é muito poderoso. Você passa a ter outro tipo de relação entre conteúdo e leitor, entre produtor e conteúdo, entre consumidor e conteúdo. Você vai ter relações mais livres. E eu acredito muito nisso: internet livre, conhecimento livre. Acho que isso é muito utópico, mas é muito bonito acreditar nisso.

DF: De quem surgiu a ideia de colocar no Porta dos Fundos os debates religiosos, sociais, políticos?
GD: A gente sempre gostou disso. Porque eu acho que o tabu é uma grande inspiração para a comédia. O humor bebe muito no risco, no proibido. Por isso é tão comum crise de riso em velório, enterro e, de modo geral, aquilo que você não pode rir é a coisa mais engraçada que tem. Então a gente se alimenta muito de tabu, com certeza. E acreditamos muito que a piada é muito poderosa. Acreditamos no poder do humor.

DF: E quais são os planos daqui pra frente?
GD: Continuidade, acima de tudo. O problema da internet é que as pessoas fazem tudo achando que é um hobby e não leva a sério, não continua. E a gente quer, sobretudo, continuar fazendo o que a gente faz. E eu quero continuar escrevendo, continuar atuando. Esse ano teve a peça do Porta, ano que vem o filme. Tem sempre outros braços que a gente vai esticando.


Futebol é a gente



"Futebol é um fato social total". Ouvia isso desde o primeiro ano de curso, na UFPB. Passei um ano e meio pra escutar a frase da boca do autor. De início, ouvia sem pretensões. Não analisava muito bem. Depois, tudo passou a ser mais importante que o jogo em si.

Sempre tenho muito receio de escrever qualquer parágrafo sobre futebol. Parece que meu facebook tá repleto de olheiros. Mas preciso aqui dizer algumas coisas. Uma delas é que em uma arquibancada minha atenção vez ou outra recai por instantes decisivos sobre a torcida. É nesse momento que começo a entender o sentido da frase lá de cima. Presto atenção em gente tanto quanto presto atenção no jogo. Mas certas coisas são capazes de desviar de vez o meu olhar.

A senhora, por exemplo, que carrega embaixo do braço uma bandeira do Brasil com escudo do Belo. Vovó, sinta-se abraçada por mim. Você representa o futebol como fato social.

A família que não poupou esforços pra ver o time jogar. Esses eu não consigo me conter. Um casal, uma filha e ao lado uma criança no bebê conforto completando a multidão de espectadores. Vocês representam o futebol como fato social.

A criança que implorou ao pai ou a mãe pra vestir o uniforme completo para ir ao estádio ver o jogo. Calção, camisa, chuteira. Esse pra mim já é um artilheiro ou um zagueiro arretado. Você, assim como muitos outros que não citei, representa o futebol como fato social.

Além disso, nessa arte bonita da bola, quem é do meu time parece me conhecer de criança. Acordo cedo, visto a camisa, o tênis, vou embora pegar ônibus. Dou de cara com um sorriso escancarado do cobrador fazendo sinal positivo. Meu dia parece que vai ser bom. Passo o cartão. Giro a roleta. "Vai hoje?", "Vamos", respondo. Já me sinto completamente acolhida por aquele olhar. "Oito e meia, né?" e ele se despede de alguém que sequer conhecia, mas já adquiriu simpatia enorme só pela estrela vermelha estampada no peito.

Por último vem a declaração de alguém que não é tocedora, mas que ama uma torcida. Vem a paixão de uma menina que ama futebol, mas não se apega tanto assim ao time (exceto o Brasil - sem julgamentos). Vem também a admiração de uma espectadora que não se importa em vestir a camisa de um time que conhece ainda muito pouco, afinal, ali, naquele momento, ela era gente como eles. Era uma torcedora de gritos, pulos e ansiedades. Era família. Futebol é a gente.

Dani Fechine